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Conto: Anelo



O conto a seguir foi escrito para um concurso literário. Boa leitura.
***
"Vivifica-me, ó Senhor, por amor do teu nome; por amor da tua justiça, tira a minha alma da angústia." Salmos 143:11
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— Afaste-se de mim e da minha irmã. Não deixarei mais que mandes em mim! — A menina chorava, tentando controlar o falar. Queria parecer forte perante aquela muralha de carne e ignorância. — Não irei permitir que faça mais mal à ninguém nesta casa!
A lâmina da faca brilhava na mão da garota, que tinha um semblante de fúria e tristeza. Apontava-a para o homem que convivia consigo, um homem que não era seu pai, e muito menos, amigo. Porém, ele pouco importava-se com tal ameaça e o sorriso largo em seu rosto era a prova disso.
Os lábios da garota estavam arroxeados e vacilavam em tremular. Seu coração estava agitado, e a sua mente queria que tudo aquilo fosse apenas um sonho ruim, e que ao acordar, tudo estaria bem ao seu redor. 
Mas, não era um pesadelo. Era real.
Carrie tinha apenas dezessete anos. Garota de corpo esguio, estatura mediana, e longos cabelos castanhos descuidados. E já naquela idade podia-se ver que no olhar daquela garota não havia o brilho de alegria, como em muitas adolescentes em sua faixa etária. Aprendera a conhecer o lado doloroso da vida bem cedo. Sua vida era problemática e sufocante. Não existiam sonhos coloridos para ela, e talvez, nunca existissem. Para Carrie, ódio e decepção eram permanentes e autênticos.
Queria rememorar como aquela pataca sexta-feira, dera drasticamente errada. Acordara muito cedo para ir para seu fatídico cursinho sobre Segurança no Trabalho, que ficava léguas de seu bairro. Lavara-se em um banho rápido, vestira a camisa — com a logo extravagante do curso —, e a mesma calça jeans desbotada que sempre usava para frequentar as aulas. Lembrara que precisava chegar cedo, perto do meio-dia, para buscar a sua irmã na porta da escola, pois sua mãe estava "indisposta". Ao chegar em casa, cozinhara a carne e cortara as verduras. Passara pela sala de estar diversas vezes a ver a mãe estirada no sofá, visivelmente de ressaca, e quando seu padrasto finalmente surgiu, desencadeou toda aquela contenda. Ele sentou-se frente à mesa, reclamou do gosto da comida, e cuspiu insultos desenfreados contra o caráter do finado pai de Carrie.
E aquilo fora a gota d'água para a garota de aparência rebelde. O seu descontrole atiçara um lado violento que ela não conhecia, deixando-a naquela desagradável situação...
— Não é nada para mim! Nada! — Esbravejava o padrasto. — Não passam de duas vagabundas que sou obrigado a sustentar.
— Minha irmã e eu não somos vagabundas! Aproxime-se de mim, e eu lhe furo! — Ainda segurava a faca, dando indícios de que estava a blefar.
— Certeza que não é uma? Veja como se veste! — Olhava-a de cima a baixo — Vive andando por aí com estes shorts curtinhos. Se aquele imbecil do defunto seu pai não soube lhe dar educação, eu vou lhe dar!
— Meu pai não era um imbecil! Ele foi um bom homem. E você não é metade do que ele era! — gritara sentindo as batidas do coração falhar, enquanto sua irmãzinha tremia-se atrás dela.
Carrie piscava rapidamente, enquanto as lágrimas corriam soltas, deixando marcas negras, que antes foram rímel e delineador a embelezar seus olhos, e agora estavam a manchar suas bochechas coradas. Sua irmãzinha, Mabel, uma garotinha de olhos assustados, chorava copiosamente, escondida na sombra da irmã mais velha, abraçando com força, contra o peito púbere, o surrado urso de pelúcia cujos olhos de botão não existiam mais.
O padrasto apenas sorriu de canto, e em um veloz golpe, segurou o braço de Carrie tomando a faca de sua mão, esbofeteando-a em cheio, fazendo a adolescente de corpo delgado e fraco cair ao chão, enquanto seus cabelos esvoaçavam, atrapalhando a sua visão. Sua mãe ouvira toda a discussão, vira a filha levar um tapa e nada fizera. Estava inerte pelas altas doses de cerveja, deitada relaxadamente no sofá da sala, encardido com molas expostas e buracos feitos por ratos.
Carrie erguera-se, apoiando uma das mãos no chão, ficando de joelhos, desejando ao menos que sua mãe fizesse ou dissesse algo. Que confrontasse aquele maldito homem! Não entendia a razão de Mabel e ela tinha que sofrer pelas tolices que a sua mãe cometera ao decorrer dos anos. Ela lembrara do dia em que aquele homem pisara os pés em sua casa. Carrie sentira que era uma péssima ideia. Recordara-se em como suplicou para que a mãe pensasse com calma no assunto. Não entendia por que sua mãe esquecera a imagem de seu finado pai, logo ele, que Carrie julgava ser um bom homem. Segundo a lei, os filhos sempre ficavam com a mãe.
A lei estava errada, era o que Carrie pensava ocasionalmente. Sua mãe não era digna de ter a guarda das filhas.
Toda aquela intriga dera início por conta do seu padrasto, estar a difamar o nome do seu adorado pai. A garota não podia deixar sair da boca daquele homem, palavras maldizentes acerca de seu progenitor, o homem que foi o seu herói, que era o seu melhor amigo.
Posicionando a mão no lugar rubro onde fora dado a bofetada, Carrie fitava com ira o homem de barriga protuberante, com manchas de catchup e gordura na camisa que antes fora branca e que certamente Carrie seria obrigada a lavar depois:
— Obedeça seu pai... — A voz de sua mãe era ébria demais para levar-se a sério. — Ele compra tudo para nós... Nos deu essa casa... — deu um bocejo longo levando os dedos para o gargalo da garrafa de cerveja, que estava aos pés do sofá, que haviam sido substituídos por tijolos, que agora cumpriam o papel de suportar o peso do móvel.
A garota arregalara os olhos, odiando o enunciado de sua mãe. Não defendera a filha. E nunca a defenderia.
— Ele não é meu pai, mamãe! — Bravejara entre dentes.
O que sua mãe estava a pensar?
Sentira uma imensa vontade em constrangê-la em falar a verdade sobre as vezes em que aquele homem inescrupuloso deixara hematomas em seu corpo. Das vezes que mandara-a para o pronto-socorro para fazer curativos, e para que mentisse para as enfermeiras, dizendo que fora apenas acidentes domésticos. Carrie queria que a mãe rememora-se tais coisas. Queria que viesse à tona em sua mente conturbada, todos os momentos ruins que seu padrasto deixou-as. Quando tentou bateu em Mabel, somente porque a menina tirou nota vermelha em matemática, ou mesmo quando bateu em Carrie na noite em que o único prato que ela lavou ficara ensaboado, ou da vez em que ele gastara todo o salário com bebidas, e passaram fome durante semanas, e Carrie humilhara-se para a vizinhança para que sua irmãzinha não fosse para a escola com o estômago vazio.
Todavia, não adiantava! Sua mãe amava aquele demônio, e se não fosse por conta da lei estúpida e falha, teria aberto mão das filhas, por conta do seu idolatrado marido.
Seu padrasto tinha um sorriso nefasto na face, mostrando os todos dentes amarelados, como se estivesse a comemorar uma vitória, ainda com a faca em mãos, e restava somente a adolescente transtornada aguentar os tormentos daquela casa.
Suportar aquele inferno.
Não era a sua primeira briga com o padrasto, mas foi uma das únicas em que sentira uma forte vontade de enterrar o aço daquela faca no peito daquele infeliz. Mas, o que seria dela? Tinha quase dezoito anos, e não estudava mais — apenas frequentava um curso tedioso — ou sequer tinha um trabalho. Iria ficar encarcerada em uma fundação para tratar de adolescentes problemáticos que eram considerados um perigo para a sociedade, além de deixar a inocente Mabel a mercê de sua mãe desnaturada, que poderia arranjar outro marido, e consigo trazer mais adversidades para o lar.
Mabel não merecia conviver naquela vida turbulenta. Não era saudável para uma menina de sete anos, conviver em meio àquele ambiente completamente deplorável, cercada por bebida alcoólica, brigas constantes, cigarros, e música estupidamente alta e dissonante.
Ela merecia mais. Um lar onde tivesse um pai de verdade e uma mãe atenciosa, que as abraçassem quando chegasse da escola, que dissessem o quanto as amava, e aos fins de semana, levassem-nas para o cinema, ao shopping, para a praia.
Carrie queria tanto ver o mar...
Ainda a olhar profundamente nos olhos de seu agressor, Carrie pegou a irmã chorosa nos braços e ambas trancaram-se no quarto. Não havia tranca com chave e a maneira que a jovem arrumou, fora colocar a cadeira contra a porta. Era um quarto simples, com duas camas de solteiro, cobertas com colchas infantis de uma certa personagem de um desenho muito assistido, que gostava de morangos e tinha cabelo cor-de-rosa. Também havia um guarda-roupas escorado na parede, que deveria ser de madeira de cedro, com a parte traseira destruída inteiramente por cupins. Nas paredes, estavam fixados pôsteres com algumas bandas de rock dos anos 80 que a adolescente gostava, além de alguns desenhos de unicórnios e fadas de Mabel, colados na parede.
Carrie prendera o choro, esfregando as mãos com raiva na face, verificando os borrões negros nas palmas das mãos.
A voz repugnante de seu padrasto ecoava em sua cabeça, depreciando-a. Nada daquilo afetava a ela mais. Somente temia por Mabel. Pobre menina que vivia a chorar e cujos sorrisos e risadas não faziam-se mais presentes em sua vivência pueril.
Mabel apenas choramingava, agarrada a perna da irmã. Carrie agachou-se, ficando da altura da irmãzinha, a fitar seus inocentes olhinhos castanhos, que agora estavam com a esclerótica avermelhada e cheia de pequeninas veias:
— Por que você brigou com ele, Carie? — Mabel apertava ainda mais o ursinho contra o peito. — Pensei que ele fosse te matar. Não quero perder você! Não quero! — Atracava-se no pescoço de Carrie.
A garota de maquiagem borrada não conseguia raciocinar. Deixara a raiva falar mais alto. Não pensou antes de agir, antes de usar a faca que cortava as verduras em defesa própria. Permitiu que todos os sentimentos ruins acumulados durante tanto tempo viessem à tona.
— Não podia... deixá-lo falar mal do papai, Mabel. — Carrie tentava controlar a voz embargada. — Quem, aquele monte de lixo, pensa que é?
— Sim, mais essa briga poderia custar a sua vida! — As lágrimas pingavam, molhando seu vestidinho simples, em rosa coral com estampa de coraçãozinho — É a minha única amiga, Carrie! Eu não quero ficar sozinha nesse mundo!
Carrie afagou seus cabelos, refletindo na bobagem que cometera. Mabel estava certa.
— Mabel, eu te prometo, que um dia vou tirar a gente dessa vida desgraçada. — Tentava manter a firmeza no timbre de sua voz. — Eu te juro que aquele homem nunca mais vai tentar machucar nenhuma de nós, isso porque estaremos bem longe daqui.
A promessa da irmã era tão valiosa para Mabel, que tal fala parecera uma prece, ficando guardada no íntimo da pequena menina.
O coração da adolescente de gênio indomável ainda saltava e suas mãos ainda tremiam, conforme aconchegava Mabel em um abraço fraterno e caloroso. Tudo que sentia era ódio. O mais puro ódio. Ódio pela sua mãe que casara com aquele crápula. Ódio daquele padrasto que existia somente para causar seu sofrimento. Ódio dos vizinhos que sempre estavam a ouvir as discussões escandalosas e nada faziam, nem mesmo serviam para ligar para a polícia. Faziam-se de surdos e cegos.
Carrie odiava a todos, menos sua irmãzinha ou seu querido pai, que Deus o tivesse.
Estava tão sozinha. Não tinha amigos, não tinha ao menos um namorado para defendê-la, confiava em Daniel, um garoto que estudara consigo no primeiro ano do Ensino Médio, e que nutria um sentimento muito especial, mas que mantinha pouco ou nenhum contato.
Presença nas Redes Sociais? Nem pensar. Era pobre demais para ter um notebook ou um celular de última geração que as propagandas de lojas famosas costumavam passar diariamente na televisão. Seu celular fora comprado com o dinheiro que conseguiu juntar aqui e ali, tinha o ecrã verde e preto, e teclado numérico emborrachado. Era pequeno e feio, porém com a bateria incrivelmente duradoura. Servia apenas para fazer e receber chamadas, além, claro, de ver as horas.
Mabel acabara por ir rabiscar com alguns tocos de giz de cera, um caderno de desenho velho e quase sem folhas. O tempo passava, e as irmãs ainda permaneciam trancadas no quarto.
Tomada pelo cansaço, Mabel dormira no chão sobre as folhas de papel com desenhos de traços disformes e coloridos. Não esperara pelo jantar, e sua irmã mais velha não queria acordá-la, afinal a pequenina desgastara suas forças, chorando. Carrie sentiu tanto remorso, enquanto carregava-a para a cama, e plantava um beijo em sua testa. Acariciou o alto da cabeça da irmã, e sua cabeça fervilhava em sair daquela casa, e levá-la consigo.
No entanto, temia passar necessidade e não queria ver Mabel sofrendo por sua causa. Carrie aguentaria todo aquele fardo, mas não queria que sua irmã passasse por nada disso. Não seria nada justo. Ajuntou um dos desenhos no chão, e um sorriso torto apareceu na face de Carrie ao olhar o rabisco de duas meninas de mãos dadas caminhando sobre uma ponte feita de arco-íris, sob uma chuva de flores.
🌷
Quando a poeira cessou, e não ouviu-se nenhum sinal de seu padrasto em casa, devagarinho abrira a porta do quarto, que insistia em ranger e caminhou diretamente para a cozinha, descalça, na ponta dos pés, e contemplara caminhando pelo corredor, a mãe estirada no sofá velho da sala de estar, adormecida pela bebida. As dezenas de garrafas no chão, denunciavam isso. Seus cabelos, curtos e tingidos de loiro deixavam-na mais pálida. O decotado vestido floral colado ao corpo, deixavam-na vulgar, e a maquiagem pesada, composta por uma sombra verde e um batom vermelho causavam estranheza em seu semblante.
Não aparentava nem de longe ser uma "mãe".
Seu coração comprimiu e por um momento, Carrie achou que iria desabar. Sentiu vontade de tirá-la dali, fazê-la dormir em seu leito, não na sala onde parecia uma qualquer, uma "mulher da vida" jogada ao sofá, depois de uma noitada de farras. Era a sua mãe. A mulher que dera vida à ela, e com a mesma intensidade, a destruiu. Sua carência foi sua perdição.
— Oh, mamãe... O que a senhora fez consigo mesma? — sussurrava na escuridão do corredor, fitando a mulher que um dia fora símbolo de força e independência.
A televisão de tubo estava ligada, e nela passava um programa que Carrie julgou ser evangélico. Percebeu isso, ao ouvir as palavras confiantes de uma voz masculina suave.
Quando deu por si, Carrie estava na sala de estar, olhando com curiosidade para a televisão, que tinha uma péssima imagem, cheia de interferências, com direito à chiados e "fantasmas". Remexera na antena em cima da televisão. Era um pastor de pele negra trajando um terno impecável, que caminhava de um lado para o outro no altar que era decorado por bromélias vermelhas. O pastor estava a animar a multidão. Todos pareciam tão felizes naquele lugar. Mulheres choravam, mas por algo que Carrie não compreendia:
"Venham a mim, os quem estão cansados e Eu vos aliviarei. Posso ouvir um Aleluia?!" — o pastor pulava com a Bíblia nas mãos. — "Jesus te ama! Jesus te ama! Jesus te ama! Creia nisso, amados!" — pregava a plenos pulmões, enquanto a multidão aplaudia com fervor.
Será se aquilo tudo era mesmo verdade? Carrie questionava-se. Havia uma maneira de lidar com tanta dor e sofrimento? As palavras daquele pastor eram poderosas e tocaram no fundo da alma de Carrie, mas então, ao olhar para o lado e ver o estado lamentável de sua mãe, a garota dera-se por convencida de que tal formula mágica que o pastor pronunciava na televisão com tanta euforia, não existia.
Balançara a cabeça em tom negativo, continuando os passos pé ante pé até a silenciosa cozinha.
A mão de Carrie tremeu, quando abriu a gaveta com madeira lascada do pequeno armário que não havia puxador causando um barulho de metal tinindo no outro. Não era hora para chamar atenção, mesmo que o traste não estivesse em casa. Respirara fundo quando seus olhos avistaram tantas facas. Não estavam tão amoladas como Carrie almejava, mas serviriam para a sua proteção:
— Caso aquele verme tente me bater de novo. — Olhava para a faca de serra com cabo laranja.
Suspirou.
Um peso dominava suas costas, como toneladas de concreto, puxando-a para um abismo profundo, escuro e assustador. Carrie queria correr até suas pernas esmorecerem. Queria fugir. Odiava aquela maldita casa! Odiava aquele maldito bairro. Sentia somente ódio. Alimentava-se dele. O que era o amor? Aprendera com a mãe, que o amor era ceder as vontades de um homem sádico e ficar contra as próprias filhas.
Perguntava-se aonde estava Deus nisso tudo, e por qual razão não a salvava das garras daquele monstro? Teria Ele, compaixão por ela? Era errado pensar daquele jeito? Carrie queria saber.
Estava tão confusa...
Guardara a faca na cintura encostando-a rente ao short e a pele, cobrindo-a com a camisa preta com o emblema de uma banda americana com armas e rosas, que era grande o suficiente para cobri-la até as coxas.
Ao virar-se a esquerda no corredor para entrar em seu quarto, encontrou o padrasto carregando a sua mãe nos ombros, caminhando direto para o quarto. Quando ele voltara? Será se a viu esconder a faca na cintura? Carrie apenas permitiu-se ficar estática, enquanto olhava seu padrasto passar por ela, sem dizer uma palavra, exalando seu cheiro de cerveja pelo local. Assim que percebeu que sua mãe estava bem, continuou a andar. A garota virou-se para checar se tudo estava bem. No entanto, seu padrasto ainda estava parado na soleira da porta, encostado no batente, olhando para Carrie de um jeito estranho. Olhava-a de cima a baixo, como fizera mais cedo, porém seu olhar era diferente, carregado de malicia oculta. Lambera os lábios demoradamente a fitar a enteada. As pernas de Carrie bambearam enquanto sentia seu coração gelar, a tentar andar apressada até o quarto.
Barrara a porta com a cadeira, retirando a faca da cintura, deixando-a em sua mão, sentando-se no chão frio e chorando baixinho, olhando com atenção para a porta como se uma monstruosidade fosse passar por ela.
Era um pesadelo, e não podia acordar. Era legítimo e claustrofóbico.
Não suportava mais aquela vida. Fugir nunca fora uma oferta tão tentadora.
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Naquela antemanhã, a adolescente de semblante sofrido não dormira. Não conseguira por mais cansada que estivesse. Ficara de guarda a vigiar a porta para que não fosse aberta por aquele ser repugnante.
Abriu a porta, temerosa. Era sábado. Mabel não tinha aulas e consequentemente, seu padrasto também ficaria em casa, e somente por lembrar do olhar dele na noite anterior, seu estômago embrulhava. Isso era algo que estava fora de cogitação para Carrie. De maneira alguma, deixaria aquele homem tocá-la. Posicionara a faca no chão, abraçando as pernas, pondo-se a chorar de novo. Sua face deveria estar um caco, não dormira, não alimentara-se e ainda por cima, seus olhos desobedeciam e as lágrimas saíam sem controle.
Andou até o espelho acoplado a porta do guarda-roupa, e ao analisar o seu reflexo, considerou-se "feia". Achou-se desengonçada. Vestia roupas que foram todas doadas por primas e amigas de sua mãe.
Não tinha nada. Nem dignidade. E seu padrasto conseguia fazê-la sentir-se pior ao proferir palavras de significado depreciativo. Seu pai lhe chamava de "princesinha", nomeava-a com palavras doces, e isso lhe fazia tanta falta.
Sentia-se tão sozinha. Tão vulnerável. Mas, estava determinada naquela manhã. Iria embora daquela casa. E quanto à Mabel? Ó, sua pobre irmãzinha não poderia ir consigo. Era uma viagem de uma pessoa só.
Agachara-se até a cama, recolhera uma mochila preta que estava debaixo dela. Colocara sua carteira cor-de-rosa com o bordado de uma gatinha branca com o seu RG e CPF, dobrara as roupas e guardara-as na mochila, e pôs junto a todas estas coisas, uma fotografia onde estavam Mabel e ela, sorrindo em um dia feliz que não voltaria mais.
Estava com a mochila pronta. Mas, não iria fugir. Não era covarde.
Calçou o tênis vermelho surrado, companheiro de anos. Suspirou fundo, olhando para a irmã que dormia, enquanto desencostava a cadeira da porta.
Pegara o celular. Pensara em ligar para o pai, contudo desistira.
Por fim, resolver ligar para Daniel, seu melhor amigo em tempos escolares. Carrie sabia que o jovem morava com a avó — uma senhora muito meiga e gentil — em um bairro até considerado bom, e que Daniel tinha uma paixão imensurável por guitarras elétricas. Ele era a sua única luz, em seu infinito túnel escuro. O celular chamara. Desejava que ele atendesse, somente ele, que do outro lado da linha, não fosse uma voz feminina dizendo que era a sua namorada. Precisava de um enorme favor da parte daquele garoto tão inteligente e calmo. Então, a espera acabou e sua chamada fora atendida:
— Alô? Quem fala? — Indagou a voz masculina e familiar do outro lado.
Carrie fez todo o esforço do mundo para não chorar. Queria sentir-se segura novamente. Queria um abraço longo e forte.
— Oi, Daniel... — suspirou. — Sou eu, a Carrie... — Fizera uma pausa, distanciando o celular do ouvido, respirando com dificuldade.
— Carrie?! — o garoto tinha uma fala branda e saudosa. — Nossa, quanto tempo não te vejo? Está tudo bem contigo?
Não havia tempo para matar a saudade. Carrie precisava desse favor urgente.
— Daniel, eu sei que é meio repentino, mas é que precisava mesmo ouvir a sua voz.
— Hmm... Está precisando de algo? — Daniel parecia animado.
Carrie coçara o couro cabeludo, refletindo se era certo pedir aquilo, e por fim, com um pouco de coragem, fizera o pedido:
— Tem algum conselho para quem estar para fugir de casa? — Falara de repente, sentindo todo o corpo estremecer, tentando encontrar forças para manter-se em pé.
Do outro lado da linha havia apenas o silêncio, e Carrie ansiara em ouvir aquela voz tão amigável e rogou para que Daniel não a ignorasse.
Estava tão farta de ser ignorada...
— Como assim? — a voz dele soou em uma pergunta, deixando Carrie mais tranquila. — Por que perguntou logo isso? Foi tão inesperado fiquei até surpreso. Que tipo de pessoa anuncia a sua fuga? — Sorria. Daniel ainda tinha seu timbre alegre.
— Eu tentei matar meu padrasto! — Carrie subitamente exclamou.
Outra vez o silêncio se fez presente do outro lado da linha. Carrie agora pensava que seu amigo deveria estar a achar que ela era algum tipo de psicopata.
— Ele lhe fez alguma coisa? — A voz do rapaz era grave, esboçando toda sua preocupação pela amiga de gênio indócil.
— Ai dele atrever-se a mexer em um fio do meu cabelo.
— Carrie, é perigoso viver com esse sujeito. Por que não avisou a polícia?
— É complicado, Dan. Vivo em um ninho de loucos. — remoía-se. — Quem acreditaria em mim? Nada de polícia. 
— E por que ligou justo para mim?
— Precisava ouvir uma voz amigável antes de partir. Desculpa por perturbá-lo, Dan. Adeus.
Terminara a ligação, e antes da fuja, foi tentar conversar com a mãe para que ao menos ela lhe ouvisse. Não havia nenhum sinal do padrasto repulsivo por perto. Sua mãe estava acordada, borrifando as plantas secas e murchas de um vaso rachado, que ficavam na janela da sala. Carrie aproximou-se dela, cruzando os braços, reparando nas linhas de expressão no rosto da mulher iludida.
— Bom dia, filhota. Dormiu bem? — perguntou, ignorando o ocorrido do dia anterior.
— Cadê aquele cruz-credo? — Carrie articulou de cenho franzido.
Sua mãe fizera de conta que a filha não insultara seu amado.
— Mãe, eu vou embora! — Fechara os olhos.
A mãe de Carrie parou de borrifar as plantas, olhando boquiaberta para a adolescente de feição enraivecida.
— Caroline... — Balbuciou.
— Não dá, mãe, não dá mais! Ou a senhora escolhe viver com as suas filhas, ou morar com aquele imbecil! — Carrie perdera a paciência, apontando para a porta da sala.
— Bem... faça o que achar melhor. — fora a sua palavra final.
Carrie não sabia descrever com palavras exatas o que sentia naquele instante, mas por um mísero momento, por pouco, não amaldiçoara aquela mulher que lhe dera a luz.
Fora até o quarto, pegando a mochila de sua viagem debaixo da cama, e ao erguer-se dera de cara com a sua irmãzinha com a face molhada por lágrimas. Mabel logo compreendera tudo.
— Mabel... eu... preciso partir. Me perdoa. — Carrie queria tanto que tal aflição acabasse.
— Achei que fôssemos juntas! — Mabel cobrara da promessa, abraçando-se ao urso de pelúcia — Você mentiu! É igualzinha ao papai!
— Não fique com raiva de mim, Mabel, eu não posso te levar comigo. Por favor, entenda! Até eu mesma, estou sem rumo. — Carrie entregara-se ao choro, abraçando a sua amada irmãzinha. — Tudo vai ficar melhor quando eu partir. Ninguém precisa de mim aqui. Sou um peso morto.
Somente Deus sabia como Carrie estava destroçada por dentro. Ela queria tirar Mabel daquela casa, e assim como naquele desenho que a menina fizera, caminhar em lugar com arco-íris e chuva de flores.
Mas, a vida para Carrie não era um mar de rosas!
Dando um demorado beijo no alto da fronte da pequena menina, Carrie andou até a mochila jogada no chão, e olhando para trás, acenou timidamente para a irmã. Carrie passara pela porta da entrada e tudo que sua mãe pode fazer por ela, fora apenas dar uma nota amassada de 20 dólares e lhe dizer "adeus".
No entanto, Carrie sentia que sua mãe estava tão arrasada emocionalmente quanto ela.
🌷
Sem lágrimas, sem a chance de dizer adeus, e sem vontade de voltar atrás, Carrie subira no primeiro ônibus, rumo a embarcar em sua nova vida. Acomodara-se no assento, abraçando a mochila, encostando a cabeça na janela, mirando a paisagem que passava por ela. Seus olhos pesavam, à medida que o ônibus sacolejava, passando por novos horizontes. Era impossível não ficar triste.
Queria tanto ser amada...
Uma mulher que também subiu no ônibus, de cabelos presos em um coque alto, e vestindo uma saia preta comprida, tocou seu ombro de leve, despertando-a de seus pensamentos, entregando à ela um folheto nas cores vermelho e verde, com os dizeres "Seu sofrimento tem um fim".
— Jesus te ama — a mulher exprimiu, olhando no fundo dos olhos de Carrie, observando como eles estavam inchados e vermelhos. — Cada lágrima que você derramou, Deus vai enxugar. Tenha fé. — Completara, passando a catraca.
A garota olhara de relance para o folheto e sentiu uma vontade repentina de rasgá-lo, fazê-lo em pedacinhos, apesar disso, não atreveu-se. O guardou na mochila, para uma futura leitura, já que esquecera de trazer consigo seus livros, mesmo para passar o tempo.
Jesus te ama. 
Aquela frase estava perseguindo-a. Lembrara do animado pastor na televisão. Ele gritava a todo instante "Jesus te ama". Carrie ainda tinha tantas dúvidas, tanta mágoa. Como Jesus a amaria, se ela cogitou em até mesmo, matar seu padrasto, e agora num ato de egoísmo, fugiu de casa, deixando a sua irmã, a única pessoa na face da Terra da qual era afeiçoada, nas garras daqueles dois desequilibrados? Como Jesus a amaria, sendo ela falha e pecadora?
Uma agonia cresceu no íntimo de Carrie. Como seria seu futuro daqui para frente? E se as portas da oportunidade fechassem diante dela? Ora, ela não tinha dinheiro consigo. Nada. Nenhuma experiência de trabalho. Temia passar fome nas ruas.
Depois de uma longa viagem, colocara a mochila nas costas e descera do ônibus, andando por vielas estreitas. Aquela mesma sensação de sair correndo, tomou conta dela. Queria chorar, mais haviam tantas pessoas andando nas ruas, que Carrie não queria parecer ridícula, desmanchando-se em lágrimas na frente de estranhos.
Já estava escurecendo, e em seu celular haviam cinco insistentes ligações perdidas, feitas por Daniel.
De repente, Carrie escuta um som harmonioso vindo de um prédio com fachada amarela. Não sabia o que estava acontecendo naquele lugar, mas a todo momento, as pessoas que ali jaziam gritando "Glórias a Deus", com júbilo. Carrie ficara curiosa. Não havia nada a perder mesmo.
Ao ficar parada na porta, como um sentinela, pode ver que as pessoas ali estavam de olhos fechados, em pé, entoando hinos de louvor. Havia uma menina de vestido branco, de aparência singela porém muito bonita, em cima do altar, cantando uma música que fez Carrie chorar como uma criança desamparada.
♪ Com tua mão, segura bem a minha, pois eu tão fraco sou, ó Salvador, que não me atrevo, a dar nenhum só passo, sem teu amparo, meu Jesus Senhor!
(...)E, se chegar à beira desse rio, que Tu por mim quiseste atravessar, com Tua mão segura bem a minha, e sobre a morte eu hei de triunfar! ♪
Sem perceber, devagarinho, Carrie estava andando pela igreja, sentando-se no último banco, admirada com aquelas pessoas que derramavam-se de corpo e alma perante à presença do Deus Vivo. Era maravilhoso de ver-se.
— Pois estou convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor. Aleluias! — Pronunciava o pastor com sabedoria — Dê um Glória a Deus, amados! Jesus te ama, Ele morreu por ti! Amor maior que esse não há!
Carrie levantou uma das mãos, desejosa por sentir o Santo Espírito agir em seu ser, fazer dela uma nova pessoa, levar embora toda aquela dor e sofrimento. Um alívio fora tomando conta de seu coração, enquanto um sorriso surgira em sua face, em meio às lágrimas.
— Eu quero te sentir, Deus. — Sussurrava — Eu creio em Ti... Tira, Senhor, da minha vida tudo aquilo que não te agrada. Me renova. Cuida de mim, Pai Eterno. Sou Tua filha.
Ela não tinha certeza do que estava sentindo, mas acreditava de todo o coração que Deus estava do seu lado. Deus estava cuidando dela.
O celular vibrou no bolso do seu short, fazendo a menina perceber que as horas já tinham corrido, como as apressadas areias de uma ampulheta. Levantou-se, não querendo sair daquele culto, pois somente ali, sentiu uma felicidade enorme, e queria tanto que Mabel e a sua mãe também pudessem sentir tal sentimento.
Atendeu o celular, e escutou a voz alarmada de seu amigo.
— Oi, Daniel... Sim, estou bem. Na verdade... Eu estou me sentindo feliz. — sorriu, fitando as cintilantes estrelas do céu.
Carrie retornou para casa. Foi recebida com um abraço aconchegante e preocupado de Mabel. Anunciou para a mãe que iria morar com a avó, e que Mabel iria junto a ela. A avó era uma mulher temente a Deus, que vivia sozinha em uma pequena fazenda. A mãe concordou. A partir daquele dia, passou a tratar-se em uma clínica de reabilitação, para curar de seus vícios, e com o tempo, foi morar com a avó das meninas. O padrasto, nunca mais se tivera notícias dele, e isso aliviou o coração da pobre Carrie. Ela vive plena seus dias, cercada pela natureza abundante. Aos poucos, foi frequentando a igreja local, junto a sua irmã e a sua mãe, e foi sentindo uma paz inundar a sua vida.
E naquele dia 19 de novembro, Carrie conheceu a Deus, e desde aquele dia, ela não consegue mais viver sem sentir a sua presença.



5299 palavras.


Comentários

  1. Justo o que eu procurava sobre janelas de vidro. Obrigada!

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  2. Chorei. Que a Val consiga encontrar a verdadeira paz.

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  3. Me identifiquei com esse conto, pq mamãe e eu vivemos um inferno parecido.

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  4. chorei lendo... esse conto teve tanto de mim que vc não faz ideia.. parece que vc viu a minha vida kkkk amei

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