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Conto: Aline


💌


Após um dia de faxina, deparei-me com uma pasta de couro, escondida em um pequeno baú de madeira. Naquele momento, tive a certeza de que acabei por achar um tesouro. Meus olhos rodeados por rugas ficaram marejados e meu coração de idosa rapidamente alegrou-se, tornando-se outra vez, jovial e vivaz. Minhas mãos enrugadas tremiam perante os papelotes que eu segurava com tanto apreço. Aquelas eram as minhas epístolas que escrevi durante toda uma vida, para um pai que nunca tive... 


"Oi, me chamo Aline e tenho seis anos. A irmã Anna, uma mulher boazinha que cuida do orfanato está me ensinando a ler e a escrever. Estou mais atrasada que as outras crianças, mas estou feliz por finalmente poder escrever algumas palavras. A irmã Anna também me incentivou a escrever cartas para pessoas que gostamos. Eu nunca vi o papai e nem a mamãe. Quero escrever para você, porque na minha cabeça, você é tipo um super-herói, que a qualquer vai aparecer na minha janela, carregar nos seus braços, e poderemos voar pela cidade. Eu te amo, papai."

***

"Hoje fomos para o zoológico, papai. Queria que o senhor tivesse comigo. Vimos girafas, elefantes, e um casal de ursos pandas muito fofos. Não podíamos comer algodão-doce, porque a irmã Anna disse para a gente que isso estraga os dentes. Fiquei chateada. Se o senhor estivesse aqui, aposto que compraria um montão pra mim. Vi algumas crianças com seus pais, passeando no zoológico, e fiquei um pouco triste. Mas, eu sei que algum dia o senhor será de carne e osso."


***

"Hoje a Beatriz me falou que unicórnios não existem. Fiquei muito chateada. Ela também me disse que eu era burra e por isso eu nunca seria adotada. Fiquei muito, muito zangada e terminei a minha amizade com ela. Beatriz é uma menina muito boba e malvada. Papai, estou chorando. Será se o senhor me daria um abraço?"

***

"A irmã Anna fez a minha matrícula em uma escola aqui do bairro. Ela disse que eu não posso atrasar os meus estudos e que já tenho nove anos. Ah, papai, eu quero ser uma moça culta e muito estudiosa. Aposto um doce como o senhor é inteligente e muito sábio. Fico imaginando o senhor rodeado de livros e com óculos redondos no rosto. Tenho de ir. Me deseje sorte no primeiro dia de aula."

***

"A escola é horrível, papai. Eu não quero mais ir para a escola. Todos caçoam de mim, e dizem que não gostam de mim porque eu moro no orfanato. Tudo mentira. O orfanato é passageiro. Eu sei que a minha verdadeira casa me espera. Eu sei que um dia, o senhor virá, e eu irei morar com você para sempre.

***

"Meu aniversário de onze anos é amanhã! Amanhã! Dá para acreditar, papai?! Sou quase uma mocinha. A irmã Anna enfeitou o orfanato e as meninas até me ajudaram. Julia, a mais velha de todas nós, fez um vestido pra mim. Quero muito usá-lo. E também, quero um bolo gigante, não, colossal! Quero três andares de chocolate e baunilha. Queria tanto que o senhor estivesse aqui. Esse seria o melhor presente que eu ganharia em toda a minha vidinha!"

***

"Paizinho, acho que estou gostando de um menino da sala. Espero que o senhor não fique zangado com ele, e nem o enxote, ou faça piadinhas estranhas. Já tenho doze anos, acho que já está na hora de eu ter um namorado. Mas, não se preocupe. Eu não vou esquecê-lo. Jamais. O papai tem um lugar especial no meu coração, e sempre terá. O cantinho do meu namorado, é o cantinho dele. O cantinho do papai, é um pedestal, todo enfeitada com flores e chocolates."

***

"Ele não gostava de mim, papai. Ele me chamou de feia e de repulsiva. Logo eu, que já tinha feito um cantinho no meu coração para ele. Meu coração está doendo tanto. Já chorei o suficiente, mas não adianta, essa dor não passa. Minha cabeça está doendo, meu nariz está entupido, e meu coração está quebrado. Queria tanto que o senhor estivesse aqui, e me desse um abraço apertado e que me dissesse: 'Filha, essa dor vai passar. Eu estou aqui e ficarei para sempre do seu lado'. Ah, papai, como estou triste."

***

"Estou começando a achar que você nunca virá me buscar. Você é um idiota, papai. Espero que morda a língua e morra."

***

"Eu te odeio, pai! Por que me faz esperar nesse inferno? A irmã Anna quer eu continue escrevendo essas malditas cartas para você. Isso é uma tortura! A irmã Anna é uma idiota. Estou escrevendo essa na base do ódio. Se um dia ler, saiba QUE EU TE ODEIO!"

***

"Só quero avisar que o Ensino Médio é uma merda, e que só escrevo essas cartas para você, é porque não tenho amigos de verdade. Meu primeiro beijo foi uma porcaria, minhas amigas são falsas, e eu ainda te odeio por me dar falsas esperanças em sair desse lixo de orfanato. Tenho 16 anos e já caí na real de que nunca serei adotada. Eu te odeio tanto, papai. Odeio!"

***

"Oi, pai. Sou eu. Aline. Estava relendo meus acessos de fúria de anos, atrás. Uau! Como eu era imatura. Bem, estou retornando a escrevê-lo, cinco anos depois, porque talvez seja um hobbie divertido. Consegui uma bolsa na Universidade, após muitos esforços e noites de estudos regadas a café, e estou cursando Artes. As coisas estão caminhando bem para mim. Duas semanas atrás, consegui um emprego como atendente de farmácia. Todos os dias, recebo a visita de um rapaz que sempre compra xarope para tosse. Todos os dias mesmo, pai. Ou esse rapaz está muito gripado, ou ele vai até a farmácia com essa desculpa, apenas para me ver. Não sei o que faria em uma situação dessas. Talvez, conversar com ele. Iniciar uma amizade. Ah, como eu queria ouvir a sua voz, dando-me conselhos.
P:S: eu não te odeio. Isso era o meu eu aborrecente e imaturo." 

***

"Perdoe-me por não tê-lo convidado para o meu casamento, pai. Eu nunca soube o seu endereço. Estou escrevendo essa carta durante a minha lua-de-mel. Isso mesmo, pai! Estou casada. Sabe o rapaz da farmácia? O senhor adoraria conhecê-lo. John é tão amável e dedicado. Tudo aquilo que pedi para Deus. Ele também iria gostar de conhecer o senhor. Aposto que passariam horas e mais horas falando sobre futebol e torcendo juntos pelo mesmo time, e nos fins de semana, faríamos churrasco. Ah, tenho de ir. Meu marido me espera."

***

"Pai, tenho uma boa notícia para lhe dizer: o senhor vai ser vovô! Enquanto escrevo, o bebê não para de chutar a minha barriga. Ela está enorme, quase com oito meses. Sei que isso já não seria mais surpresa, Porém, faz tanto tempo que não escrevo para o senhor... Se o senhor me visse com um barrigão, creio que muito ficaria assustado. Estou fazendo listas com os supostos nomes para o seu neto. Gostaria tanto de uma sugestão vinda de meu pai. A propósito, é uma menina." 

***

"Oi, pai. Quanto tempo não lhe escrevo. Acho que só estou rascunhando essa carta por estar chateada com tudo. A vida de casada não era tão doce como eu esperava. São muitas dívidas, dúvidas e discussões. Meu marido e eu batemos muito boca, e nos aborrecemos constantemente na frente das crianças, e acredito que isso não fará bem para a saúde mental delas. Jane e Allan temem que o pai se divorcie, e vá embora de casa. Não quero que meu casamento se arruíne, pai. Queria que o senhor pudesse conversar com John, e lhe dar conselhos. Estou estragando tudo. Sou uma péssima mãe e esposa."

***

"Estou entristecida, desiludida, morta por dentro. John morreu, papai! Escondeu de mim que tinha câncer. Carregou a doença por oito anos, sofrendo em silêncio. Oh, pai, eu o amava tanto. Nossos filhos ainda são adolescentes, e agora, serão adultos sem pai. Serão como eu fui em relação ao senhor. John era a cola que mantinha essa família unida. Agora, Jane e Allan passam o dia trancado no quarto, cada um sofrendo em seu isolamento. Papai, ajude-me. Estou perdida. Sem chão. Em pedaços..." 

***

"Pronto para a novidade, pai? O senhor será bisavô! Sou uma avó tão jovem. Tenho apenas cinquenta e nove anos, ha ha. Jane deu à luz a um menino. Forte e saudável. Deu a ele o nome de John, em homenagem ao pai. Allan bateu algumas fotos, e anunciou que está noivo, de uma jovem muito bonita aliás. Céus, estou velha, papai. Meus filhos, que outrora eram bebezinhos, estão adultos, e cada um está seguindo a sua estrada. Foi isso que o senhor sentiu em relação a mim? Estou imaginando-o bem idoso, na casa dos oitenta anos, com cabelos grisalhos, bem branquinhos como a neve, barba espessa, como o Papai Noel, sacolejando-se levemente em sua cadeira de balanço, olhando para um horizonte pintado de laranja. Gostaria de desenhá-lo, mas as minhas mãos já não funcionam tão bem como antes." 

***

"Acho que esse seria o momento de nossa despedida. Aqui, escrevo um posfácio para um adorável pai, que mesmo não sendo de carne e osso, acompanhou-me nos bons e maus momentos da minha vida. Estou velha e mal consigo terminar essa carta, se não fosse a ajuda da minha netinha, Mary, filha de Allan. Ela tem nove anos, e é tão esperta. Ah, papai. Emocionei-me com todas as minhas cartas que escrevi ao senhor. Revivi a minha infância, minha adolescência rebelde, minha juventude, meus amores, minhas dores, minha vida. E o senhor sempre esteve lá. Todavia, papai, eu também não vou aguentar muito tempo. Estou em uma cama, rodeada pela minha família. Uma família grande. A família que sempre almejei. Estou muito doente. Meus olhos já não veem mais a luz e meu coração está fraco. Quase parando. Aqui, será a despedida de nós. Tenho fé em vê-lo nos Céus. E vou poder abraçá-lo de verdade e dizer todas as palavras que guardei dentro de mim. Meu amor por ti é muito grande.
Meu pai, meu herói, meu carrasco, meu conselheiro, meu sábio, meu melhor amigo.
Amo-te e sempre amarei-te, papai.
Beijos de sua eterna filhinha, 
Aline."
















1720 palavras.


Comentários

  1. Que lindo conto. Que historia magnífica. Ainda bem q a Aline superou a timidez e ficou com o amor da vida dela :3

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  2. Regina20:54

    que bom que a Aline superou a timidez e ficou com o amor da vida dela :)

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  3. Nossa, a última carta dela... minha criança interior não aguentou. Chorei um rio.
    Te amo, Aba Pai.

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  4. não sei onde esse pessoal viu "ah ela ficou com o amor da vida dela" sendo que é um conto do amor de uma filha pelo seu pai que nunca existiu.
    gosto de achar que ela escreveu essas cartas para Deus.

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    1. Verdade. Um pai que nunca nos desampara que sempre estará lá por nós. Amém.

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